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  • magalymbueno

O último sábado.



Era sábado. Eu saí de uma palestra na qual tinha permanecido o dia todo. A tarde estava muito abafada, logo choveria. Nuvens escuras estavam se amontoando no horizonte. Perto dali havia um cemitério.

Sempre gostei de apreciar arte tumular, além do silêncio e paz característicos do local. Como não tinha nenhum outro compromisso além de voltar para casa, deixei o carro onde já estava estacionado desde o início da manhã e fui a pé.

Andei devagar, apreciando a brisa que antecipava a chuva. Alguns relâmpagos e trovões completavam o cenário, o meu favorito na verdade. Sempre achei aconchegante esse conjunto de fenômenos naturais.

Conforme me aproximava do cemitério, o vento foi aumentando, assim como o rugido dos trovões. Quando passei pelos grandes e imponentes portões, corri até uma cobertura, para me abrigar dos grossos pingos de água que iam se avolumando segundo após segundo.

Protegido ali, também estava um vigilante do cemitério. Cumprimentei-o e ele me retribuiu. Fiquei ali, com aquela sensação de que tudo estava sob controle, que não havia nada com o que me preocupar, além de esperar a intensidade da chuva diminuir para passear pelas alamedas.

Peguei o chocolate que havia comprado na hora do almoço e comecei a beliscá-lo. Ofereci ao vigilante, ele negou, agradeceu e sorriu. Era bonito. Sorri de volta.Poucos minutos depois de ter chegado, o aguaceiro perdeu força e sobraram apenas chuviscos. Era hora de ir. Me despedi do moço. Ele acenou.

Coloquei os pés na alameda principal. O ar agora era fresco e as pequenas gotas que ainda insistiam em cair criavam ondulações nas poças pelo caminho. As árvores farfalhavam. Raras pessoas circulavam por lá.

Gostava do barulho dos meus passos no piso de cimento molhado.Fui fotografando aqui e ali as esculturas e entalhes que adornavam os túmulos. Registrei também aquelas plantas que nascem em locais improváveis. E gatos, muitos, de todas as cores e tamanhos.

Não sei se as pessoas abandonam os felinos nos cemitérios ou se estes majestosos animais encontram ali o ambiente perfeito de calmaria e alimento abundante.

Continuei minha caminhada, mas sem coragem de ir até os limites do terreno, pois isso implicava em me afastar cada vez mais das poucas pessoas que circulavam por ali e, como mulher nesse mundo terrível, tive medo de ser atacada sem que ninguém visse.

Então, algo me chamou a atenção. Um túmulo simples, sem nenhuma imagem para adorná-lo, recém construído, todo revestido de cerâmica branca. Sobre ele, estava um vaso com uma orquídea, da espécie denphal, com três hastes repletas de flores de um roxo muito intenso.

Sem dúvida, algo fora do comum, já que nunca tinha visto aquele tipo de planta ornamentando um jazigo. O conjunto destoava muito do entorno e me deixou, ao mesmo tempo, intrigada e encantada. Orquídeas eram meu espécime vegetal favorito.

A sepultura não possuia nome ou foto do seu ocupante. Talvez a placa não tivesse ficado pronta ainda. Me assustei com o estrondo de um trovão, que me tirou daquela momento contemplativo. Olhei para o céu e vi nuvens muito escuras e carregadas, para as quais não tinha me atentado. Teriam se formado tão rápido assim?

Tirei as últimas fotos e me apressei tentando alcançar a saída o mais breve possível. Meu carro estava um pouco distante dali e tive que correr. Atravessei os portões e parti pela rua sem demora.

Raios cortavam o firmamento cinza e o vento açoitava as árvores impiedosamente. Fora do cemitério, ví apenas uns poucos vendedores de flores, recolhendo seus produtos antes que a ventania derrubasse tudo.

Folhas de árvores, copos plásticos, folhas de jornal estavam sendo arrastados pelo asfalto. Entrei no carro no exato instante em que o céu desabou, um aguaceiro tão forte que eu não enxergava nada pelos vidros.

Liguei os limpadores de para-brisa, que se forçavam violentamente para debelar a cascata formada pela chuva. Me virei para colocar minha mochila no banco de trás e percebí algo inusitado, que me fez sentir um frio na barriga.

No chão do carro, atrás do banco do passageiro, estava uma flor da orquídea que eu acabara de ver no cemitério. Como aquilo era possível? Não havia a menor possibilidade de ter vindo agarrada à minha roupa ou mochila. Eu não tinha tocado no vaso, nem mesmo no túmulo.

Fiquei atordoada. Não poderia deixar aquela flor ali, era como carregar um mau sinal. Peguei-a delicadamente, quase que pedindo desculpas, e, depois de baixar um pouco o vidro, joguei-a pela janela.

A chuva tinha diminuído só um pouco. Respirei fundo e decidi pensar no ocorrido somente quando chegasse em casa. Até lá, eu me concentraria em conduzir o carro em segurança até em casa. Ficava insegura dirigindo sob chuva intensa.

Fiz o trajeto de 25 minutos em quase 60. Devagar, com cautela, mantendo distância dos veículos à frente. Já no meu bairro, dobrei à esquerda para pegar a rua onde moro.

Ainda chovia bastante e me inclinei para a direita, tentando abrir o porta-luvas para pegar o controle do portão automâtico. Tirei os olhos da via por um ou dois segundos e quando me endireitei, quase provoco uma acidente.

Algo escuro, que eu não soube identificar, passou pela frente do carro, pensei que tinha atropelado alguém, mas foi como se tivesse atravessado a lataria do veículo. Me arrepiei quando olhei pelo espelho interno e ví aquela sombra pairando no meio da rua, há alguns metros de distância.

E como fumaça, se desfez no ar. Acionei o controle, mas o portão já estava aberto. O carro da minha irmã estava estacionado na frente e eu não pude entrar com o carro na garagem. Era uma cena estranha, tinha algo de errado.

Ouvi minha mãe chorando alto quando passei pela porta da sala e minha irmã conversava com alguém no telefone, algo entre irritada e perplexa. Senti um mal-estar e fiquei surda, pois não ouvia mais o choro, a conversa e nem a chuva.

Ví a ponta de um tênis igual ao que eu estava usando. Era como se alguém estivesse deitado na cozinha, atrás da parede e eu só conseguia ver os pés que apareciam atrás do batente da porta. Me movi pela sala para chegar a cozinha e ninguém me percebeu.

Além do tênis idêntico, vi as pernas nuas, o corpo usava um vestido como o meu. A cabeça repousava numa poça de sangue fresco. Sobre a mesa, tinha um martelo sujo de sangue e cabelo e um vaso de orquídea da espécie denphal com flores de um roxo profundo.

Eu não sabia o que havia acontecido comigo, mas eu estava morta.


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